Nobel da Paz: “O Papa no Congo recordará ao mundo a nossa guerra esquecida”

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Alessandro di Bussolo – Vatican News

Denis Mukwege Mukwege, médico ginecologista e ativista dos direitos humanos de 67 anos, Prêmio Nobel da Paz de 2018, construiu o Hospital Panzi em 1998 na sua cidade natal Bukavi, para tratar e ajudar as vítimas de “estupro como arma de guerra”, apesar das ameaças de grupos armados no país. Era o início do conflito no Congo e hoje nos diz com os olhos brilhantes: “O mundo não pode continuar em silêncio”. Porém se anima quando lhe perguntamos sobre a visita do Papa, agendada de 31 de janeiro a 2 de fevereiro de 2023: “Acrediramos que a ocasião nos permitirá  virar a página: o mundo verá o que está acontecendo no Congo, e esperamos que as autoridades internacionais finalmente façam alguma coisa para deter estas atrocidades”.

Cerca de 80 mil mulheres operadas no Hospital Panzi

A crise da região dos Grandes Lagos, é uma crise esquecida, filha do genocídio de 1994 em Ruanda, onde as mulheres são violadas diariamente pela guerrilha. Um ato terrível, usado como arma de terror para cortar os laços das comunidades, mas também como instrumento de extermínio, quando também visa tornar as vítimas estéreis. O Dr. Mukwege, é hoje o maior especialista mundial na reconstrução interna do aparelho genital feminino após o estupro, e sua equipe operou quase 80 mil mulheres nos últimos anos, trabalhando até 18 horas por dia e realizando até 10 cirurgias por dia. A coragem deste extraordinário cirurgião permite que as vítimas iniciem uma nova vida. De fato, ao lado do Hospital Panzi, foi construída uma instalação segura ao longo dos anos, onde as pacientes – e seus filhos – encontram refúgio. As mulheres aprendem a costura, tecelagem e outros trabalhos, a fim de se tornarem autossuficientes e recomeçarem a viver.

Mukwege em Bukavu com pacientes do Hospital Panzi, que ele fundou em 1998
Mukwege em Bukavu com pacientes do Hospital Panzi, que ele fundou em 1998

Entrevista

O senhor falou muitas vezes do drama do silêncio sobre o Congo, sobre sua terra, sobre o que está acontecendo lá. O senhor acredita que a visita do Papa, confirmada para o final de janeiro, poderá levar um fim a este silêncio no mundo e maior atenção ao que está acontecendo no Congo? E depois a uma possível reconciliação no país?

Antes de tudo, nós congoleses aguardamos esta visita com grande impaciência, pois pensamos que sua chegada ao Congo nos permitirá uma virada. A visita do Papa, do Santo Padre, não só focalizará o que está acontecendo no Congo, mas também esperamos que a imprensa internacional fale sobre o assunto e que as autoridades internacionais tomem finalmente as medidas necessárias para deter estas atrocidades, que são uma vergonha para nossa humanidade. Hoje, quando vi as imagens que me foram enviadas da aldeia de Kishishe, no norte de Kivu, e senti uma grande dor no peito, pensando que alguém possa matar crianças e mulheres indefesas desta maneira. E o mundo não pode continuar em silêncio.

No Congo, a maioria dos habitantes são cristãos, mas o drama da violência e da não reconciliação após anos de conflito interno se deve principalmente aos que vêm de fora. Então não é apenas um problema dos congoleses?

Este é o principal problema do Congo. Eu trabalho em um hospital onde recebo todas as tribos que vêm ao hospital. E vejo que as pessoas comem juntas, dividem camas, dividem tudo, portanto não é um problema de conflito entre grupos étnicos, é muito mais uma guerra econômica, na qual aqueles que estão criando esta guerra estão usando a estratégia do caos, estão criando o caos na região para permitir o saque dos recursos naturais do Congo. Portanto, creio que a Igreja deve realmente desempenhar seu papel, mas não se trata tanto de um problema de reconciliação entre os congoleses, mas um problema que começou após o genocídio em Ruanda, em 1996, e que tem continuado desde aquela tragédia. Ainda hoje, mais de 25 anos depois, os congoleses continuam pagando por uma crise regional que não teve origem no Congo, mas que hoje causa muito mais danos no Congo do que no país onde ocorreu o genocídio. E acho que devemos fazer uma distinção, não devemos confundir as coisas, considerando que não se trata de uma guerra entre protestantes e católicos, entre católicos e muçulmanos ou outros. Não, não se trata de uma guerra entre grupos étnicos. São os políticos que querem transformar esta guerra em uma guerra étnica, mas não é uma guerra étnica, é uma guerra econômica com a estratégia do caos para saquear os recursos naturais do Congo.

Justamente porque não é uma guerra religiosa, mas uma guerra econômica e política, o que vocês pedem à comunidade internacional, às Nações Unidas e também ao Fundo Monetário Internacional?

Nosso pedido à comunidade internacional é muito claro: existe um direito humanitário internacional a ser respeitado. O Congo está sob ataque, o Congo foi invadido e hoje é ocupado por forças estrangeiras ruandesas associadas aos terroristas M23. O que estamos pedindo à comunidade internacional é que aplique o direito humanitário internacional, que exige que todos os Estados membros da ONU respeitem a soberania e a integridade territorial de outros Estados, isto é a primeira coisa. A segunda coisa é que existem resoluções que proíbem aos Estados ou às instituições de fornecer armas aos rebeldes na região dos Grandes Lagos. Hoje, há muito provas que demonstram muito bem que foram dadas armas ao M23, um movimento que tinha sido derrotado, e se hoje tem armas mais sofisticadas do que as da Monusco, a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo, significa que essas armas vieram de algum lugar! Pedimos sanções, porque a ONU é capaz de rastrear a origem dessas armas e saber quem é o fornecedor. E os fornecedores devem ser sancionados. Hoje vemos que os países que estão na origem dessas agressões são apoiados, recebem dinheiro da União Europeia. É um escândalo ver que os países que nos atacam têm o apoio da União Europeia. Exigimos que acabem com esta cumplicidade.

Falemos agora sobre o maravilhoso trabalho que o senhor faz no seu hospital em Bukavu, o Hospital Panzi. Como é a situação no momento? O que o senhor precisa para continuar a sua obra?

No Hospital Panzi temos várias categorias de pacientes que recebem tratamento gratuito. Em primeiro lugar, as mulheres vítimas de violência sexual, que não apenas tratamos e transportamos, mas também alimentamos e fornecemos kits de higiene. Todos os pacientes com HIV-AIDS são atendidos gratuitamente. Assim como as crianças que sofrem de desnutrição. Também as mulheres com consequências obstétricas patológicas. Atualmente todos estes pacientes são cuidados com os provenientes de doações, inclusive das igrejas. Precisamos ser capazes de continuar a ajudar esta categoria de pessoas que foram abandonadas, rejeitadas e que não podem ter acesso ao tratamento. E seu apoio, é claro, é muito bem-vindo.

Vocês têm planos de abrir outros hospitais? Se tivesse mais fundos, o senhor acha que sua fundação poderia se engajar em outras aberturas em outras regiões do Congo?

Absolutamente, sim. Temos mulheres chegando ao nosso hospital de muito, muito longe. Hoje começamos em Kinshasa, vamos onde já temos atividades. Mas compramos um pedaço de terra em Kisangani, para que as mulheres que vêm de toda a região possam ser tratadas. Também começamos a trabalhar em Sankuru, em Loja, onde gostaríamos de construir uma clínica, que chamaremos de “One stop centre”. Nosso objetivo é aproximar o tratamento dos pacientes. O grande problema é que os pacientes têm que vir de muito longe: temos pacientes vindos das regiões norte, de Gemena, de Cabinda, de Jumbi, muito ao norte, é muito, muito difícil trazê-los para Panzi. Para chegar a Kinshasa, precisa de avião assim como Goma e Bukavu. É muito caro para nós. Portanto, atualmente consideramos necessário transferir o hospital de Panzi, para ter centros que possam fazer o mesmo trabalho que nós fazemos, mas fora de Panzi.

Qual é o seu sonho para o futuro do Congo, para o futuro das mulheres do Congo?

Acho que sonho com as mulheres congolesas que, quando você lhes pergunta qual é o sonho delas, respondem: ter paz. Penso que ter paz na República Democrática do Congo seria um bem raro, que não temos há 25 anos. Isso é o que precisamos para reconstruir nosso país, para dar aos nossos filhos um futuro, para educar nossos filhos em condições aceitáveis, para que nossos filhos não só possam ser instruídos. Hoje temos a desnutrição simplesmente porque as pessoas não podem cultivar, não podem trabalhar normalmente. E assim nosso sonho é a paz.

Vatican News

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