Domingo, 8 de março de 2020: a linha divisória que separa o “antes” e o “depois” passa por esta data. É o dia do primeiro Angelus do Papa Francisco recitado, ao vivo em áudio-vídeo, da Biblioteca do Palácio Apostólico. O confinamento imposto pela pandemia da Covid-19 é iminente. “É um pouco estranha esta oração do Angelus de hoje, com o Papa ‘engaiolado’ na Biblioteca, mas vejo vocês, estou próximo a vocês”, disse Francisco no início da transmissão. Depois, no final, um fora de programa: o Papa vai à janela do Palácio Apostólico para abençoar a Praça São Pedro. Ainda não se sabe, mas aquela praça, ao longo dos meses, ficará vazia e silenciosa; será preenchida com a oração do Pontífice e as esperanças do mundo. É ali que, debaixo de chuva, Francisco preside, na noite de 27 de março, sexta-feira da Quaresma, o Momento extraordinário de oração em tempos de pandemia para convidar a humanidade a não ter medo e a confiar-se ao Senhor: “Temos uma esperança: em sua cruz fomos curados e abraçados para que nada e ninguém nos separe de seu amor redentor”, disse ele.

Audiências Gerais: oração, cura e Bem-aventuranças

A oração e a emergência de saúde também retornam nas catequeses das Audiências Gerais de 2020: à primeira, o Papa dedica todo um ciclo que começa em 6 de maio e recomeça em 7 de outubro. A partir do mês e agosto, o Pontífice reflete sobre o tema “Curar o mundo”, lembrando em particular, na quarta-feira 19, a importância do acesso universal à vacina. Um terceiro ciclo de catequeses, de janeiro até o final de abril, foi dedicado às Bem-aventuranças. Até 31 de dezembro próximo, serão um total de 46 audiências gerais, este ano, e 58 as vezes em que o Papa rezará o Angelus e o Regina Coeli, encontrando a ocasião para lançar numerosos apelos pela paz. Prevalece, porém, a exortação de 19 de julho: “Renovo o apelo por um cessar-fogo global e imediato, que permita a paz e a segurança indispensáveis para fornecer a assistência humanitária necessária.” De 9 de março a 18 de maio, as igrejas na Itália foram proibidas de celebrar com a presença do povo e o Pontífice autorizou a transmissão áudio-vídeo ao vivo da missa por ele presidida todas as manhãs às 7h na Casa Santa Marta. A última transmissão ao vivo realizou-se da Basílica Vaticana na manhã de 18 de maio, centenário do nascimento de São João Paulo II.

“Fratelli tutti” e “Querida Amazônia”

2020 foi também o ano da terceira Encíclica do Papa Francisco: em 4 de outubro, foi publicada a “Fratelli tutti”, na qual o Pontífice indica a fraternidade e a amizade social como vias primárias para construir um mundo melhor. Antes, em 12 de fevereiro, foi divulgada a Exortação Apostólica “Querida Amazônia”, fruto do Sínodo Especial para a Região Pan-amazônica, realizado em outubro de 2019. O texto representa o desejo de Francisco de uma Igreja com rosto amazônico e traça novos caminhos de evangelização e de cuidado do meio ambiente. Não por acaso, este ano também se celebra o quinto aniversário da segunda Encíclica do Papa Francisco, “Laudato si”, celebrada, em 18 de junho, com o documento “A caminho para cuidar da Casa comum”, preparado pela Mesa Inter-dicasterial da Santa Sé sobre ecologia integral e destinado a interpelar todo cristão a uma relação saudável com a Criação. Em 24 de maio, foi lançado um especial “Ano da Laudato si’”, e em 12 de dezembro, o Papa Francisco enviou uma mensagem em vídeo aos participantes da “High Level Virtual Climate Ambition Summit” (Cúpula Virtual de Alto Nível sobre Ambição Climática), conferência de vídeo climática da ONU para reiterar o compromisso do Vaticano de reduzir a zero as emissões de gases de efeito estufa antes de 2050.

O Ano Especial para a Família “Amoris Laetitia”

Entre as Cartas Apostólicas de 2020, destaca-se a “Patris corde”, divulgada em 8 de dezembro, há 150 anos da declaração de São José como Patrono da Igreja Católica feita pelo Beato Pio IX. Para a ocasião, foi anunciado pela Penitenciaria Apostólica um especial “Ano de São José”, que se concluirá em 8 de dezembro de 2021. No Angelus de 27 de dezembro, Francisco anunciou que em 19 de março de 2021 será inaugurado o Ano “Família Amoris Laetitia” que se concluirá em 26 de junho de 2022, com o 10º Encontro Mundial das Famílias, programado para Roma. O ano que se aproxima do fim também contou com algumas celebrações especiais presididas pelo Pontífice: em 26 de janeiro, na Basílica Vaticana, realizou-se a Missa do primeiro Domingo da Palavra de Deus, instituído pelo Papa em 2019. Na noite de 10 de abril, a Praça São Pedro foi o cenário da Via-Sacra, escrita pelos detentos da prisão “Due Palazzi”, em Pádua. No final do rito, o Papa não fez nenhum discurso, mas seu silêncio orante foi mais forte do que qualquer palavra. O mesmo silêncio, cheio de fé, o acompanharia, meses depois, na Praça de Espanha, em Roma: no amanhecer de 8 de dezembro, Solenidade da Imaculada Conceição, o Papa se deteve em oração aos pés da imagem da Virgem.

A Urbi et Orbi da Páscoa e Cabo Delgado no mapa do mundo

Em 12 de abril, Páscoa da Ressurreição, a Basílica Vaticana estava vazia: o Papa presidiu a Missa na presença de poucas pessoas e pronunciou a Urbi et Orbi diante do Altar da Confissão. Naquele dia, o drama de Cabo Delgado, Moçambique, chegou à atenção internacional. Dentre os vários apelos à paz que Francisco lança em sua Mensagem à cidade e ao mundo, há também uma para a província situada no norte do país africano, cenário há três anos de conflito violento. Naquele momento, é como se o Papa colocasse Cabo Delgado no mapa do mundo. No dia 22 de novembro, Solenidade de Cristo Rei, a Basílica Vaticana também recebeu a cerimônia de entrega da Cruz e do Ícone Mariano, símbolos da Jornada Mundial da Juventude, entre os jovens do Panamá, país anfitrião da JMJ 2019, e os jovens de Lisboa, cidade que sediará o evento em 2023. Para a ocasião, o Papa estabeleceu que a celebração diocesana da JMJ seja transferida do Domingo de Ramos para o Domingo de Cristo Rei.

As reformas nos campos judiciário e econômico

Do ponto de vista das reformas, no ano que está chegando ao fim, Francisco assinou vários documentos: em março, promulgou a lei CCCLI sobre o sistema judiciário do Estado da Cidade do Vaticano, que substituiu a que estava em vigor desde 1987, dando maior independência aos magistrados. Em 1º de junho, foi a vez do Motu proprio “Normas sobre transparência, controle e concorrência dos contratos públicos da Santa Sé e da Cidade do Vaticano”, seguido, em 5 de dezembro, pelo novo Estatuto da Autoridade de Informação Financeira, que se torna Autoridade de Supervisão e Informação Financeira. Por fim, em de 28 de dezembro, com o Motu proprio “Sobre algumas competências em matéria econômico-financeira”, a gestão de fundos e imóveis da Secretaria de Estado, incluindo o Óbolo de São Pedro, foi transferida para a APSA. Ao mesmo tempo, foi reforçado o papel de controle da Secretaria para a Economia que terá a função de Secretaria Papal para assuntos econômicos e financeiros. Também significativa foi, em 22 de outubro, a renovação por dois anos do Acordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China, assinada em Pequim em 2018 e relativa à nomeação dos bispos. A prorrogação foi seguida, em 24 de novembro, pela nomeação de um novo prelado, dom Thomas Chen Tianhao, que guiará a Diocese de Qingdao.

Relatório McCarrick e a proximidade do Papa às vítimas de abusos

Também em novembro, na terça-feira 10, foi publicado o “Relatório sobre o conhecimento institucional e o processo de decisão da Santa Sé em relação ao ex-cardeal Theodore Edgar McCarrick”. Reconhecido como responsável por abuso sexual de menores e demitido do estado clerical em 2019, o ex-purpurado é objeto de um extenso dossiê que a Secretaria de Estado está elaborando a mando do Papa. O próprio Pontífice fala sobre isso na Audiência Geral em 11 de novembro: “Ontem, foi publicado o Relatório sobre o doloroso caso do ex-cardeal Theodore McCarrick. Renovo minha proximidade às vítimas de todos os abusos e o compromisso da Igreja de desarraigar este mal”, disse ele. No final de 2020, a composição do Colégio Cardinalício muda: em 28 de novembro, no sétimo Consistório de seu Pontificado, Francisco criou 13 novos cardeais, chamando-os para o novo cargo das periferias do mundo: países como Brunei e Ruanda passam a fazer parte da “geografia” do Colégio Cardinalício pela primeira vez.

Viagens na Itália

Além disso, 2020 é o ano sem nenhuma viagem internacional do Papa, que viaja apenas na Itália. Em 23 de fevereiro, ele foi a Bari para o Encontro de reflexão e espiritualidade “Mediterrâneo, fronteira de paz”. Ali, o Pontífice invocou a paz e a fraternidade, porque a guerra “é uma loucura à qual não podemos nos resignar. Nunca”. Em 3 de outubro, Francisco foi a Assis, em visita particular, e ali, no túmulo do Santo Pobrezinho, assinou a Encíclica “Fratelli tutti”, que seria lançada no dia seguinte.

Videomensagens, sinal de proximidade aos fiéis

Durante esses 12 meses, o Pontífice gravou numerosas videomensagens, dentre as quais as de 25 de setembro e 10 de dezembro. Na primeira, Francisco se dirige à 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas e lança um forte apelo à Comunidade internacional para que ponha fim à corrida aos armamentos, proteja os direitos dos migrantes e repense os sistemas econômicos e financeiros. Ele também condenou fortemente o aborto como “serviço essencial” humanitário. A segunda mensagem em vídeo foi dirigida aos participantes do encontro promovido on-line pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, sobre a crise na Síria e no Iraque. “Devemos fazer com que a presença cristã, nestas terras, continue sendo o que sempre foi: um sinal de paz, progresso, desenvolvimento e reconciliação.”

Anúncio da viagem ao Iraque, ponte para o futuro

Foi o Iraque que projetou o Pontificado de Francisco para 2021: em 7 de dezembro, foi anunciada a viagem do Papa ao solo iraquiano de 5 a 8 de março próximo. Uma visita que Francisco deseja fortemente, tanto que tinha manifestado a intenção de realizá-la em junho de 2019, na audiência aos participantes do Reunião das Obras de Ajuda às Igrejas Orientais (Roaco). Um sinal nessa direção veio em 25 de janeiro de 2020, quando o Pontífice recebeu no Vaticano Barham Salih, presidente do Iraque.  Portanto, cabe a este país construir uma ponte entre um ano que termina e outro que chega, prenúncio de novas esperanças.

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O ano de 2020 do Papa Francisco, como o de cada um de nós, foi profundamente marcado pela pandemia. Nenhuma viagem, poucas audiências gerais com a presença contingente de pessoas no final do verão, depois novamente interrompidas com a chegada da segunda onda de contágio, celebrações públicas de forma reduzida com a participação de pequenos grupos de fiéis. O que faltou foi o contato diário com as pessoas, contato físico feito de abraços, apertos de mão, palavras sussurradas com lágrimas nos olhos, bênçãos traçadas na cabeça, olhares que se cruzam e se encontram. Francisco também, à sua maneira, teve que cumprir sua missão smart working, permanecendo em casa, conectando-se de forma virtual, multiplicando os contatos telefônicos.

O ano do Papa Francisco foi marcado pelas palavras da Exortação Querida Amazônia, que recolheu o discernimento do Sínodo de outubro de 2019 e foi publicada na véspera do surto da pandemia: um forte chamado a olhar o que acontece naquela região esquecida. A indicação de caminhos concretos para uma ecologia humana que leve em conta os pobres, para a valorização das culturas e para uma Igreja missionária com um rosto amazônico. Então, assim que a Covid-19 parecia conceder uma trégua, pelo menos na Itália, Francisco retomou as audiências gerais com os fiéis propondo-lhes um ciclo de catequeses sobre o futuro que queremos construir após a pandemia. Por fim, em outubro passado, o presente de uma nova encíclica, Fratelli tutti, que indicou a fraternidade e a amizade social como resposta às sombras do ódio, da violência e do egoísmo que às vezes parecem prevalecer em nosso mundo ferido não apenas pelo coronavírus, mas pelas guerras, injustiça, pobreza e mudanças climáticas.

O evento simbólico do ano apenas transcorrido, permaneceu, na memória de todos, o de 27 de março, com a Statio Orbis, a súplica a Deus para que intervenha e ajude a humanidade afetada pela pandemia: Francisco sozinho, debaixo de chuva, na Praça São Pedro desoladamente vazia como nunca e ao mesmo tempo nunca tão cheia, graças a milhões e milhões de pessoas conectadas em todo o mundo para rezar em silêncio. O Papa que sobe lentamente os degraus largos para chegar ao adro e nos lembra que estamos todos no mesmo barco, incapazes de nos salvar sozinhos; o Papa beija os pés do Crucifixo de São Marcelo, levado em procissão pelos romanos contra a peste; o Papa que abençoa a cidade e o mundo com o Santíssimo Sacramento enquanto no fundo se ouvem as sirenes em uma Roma paralisada pelo confinamento.

Mas houve outro evento cotidiano, menos marcante e ainda mais importante, que permitiu a Francisco acompanhar milhões de pessoas no mundo durante a primeira parte deste 2020, no tempo do medo e da desorientação. Foi a Missa diária celebrada na capela da Casa Santa Marta às 7 horas da manhã: durante três meses o Sucessor de Pedro bateu suavemente nas portas de nossas casas, nos convidou a não ouvir grandes discursos ou longas catequeses, mas antes de tudo a ouvir as palavras da Escritura, comentadas com breves homilias espontâneas e seguidas, após a celebração eucarística, de alguns minutos de adoração silenciosa diante do Santíssimo. Toda manhã, todo meio-dia ou toda tarde, dependendo do fuso horário, muitas, muitas pessoas, mesmo não praticantes e não fiéis, sintonizaram o rádio, TV, streaming, para ouvir a mensagem do Evangelho e a voz do Bispo de Roma que se tornou o pároco do mundo.

E se as imagens do Papa sozinho na praça em 27 de março, comoveram, emocionaram ainda mais as de muitos fiéis ajoelhados diante de uma tela ou de um celular durante a consagração, das Américas à Europa, na China como na África. A sobriedade essencial dessas celebrações, precedidas por breves orações pelas categorias mais afetadas pela Covid-19, fez companhia, ofereceu vislumbres de esperança, ajudou a rezar, nos fez todos sentir menos sozinhos, menos isolados, menos abandonados. A proximidade ao povo de Deus, o acompanhamento realizado com aquelas missas compartilhadas nas telas em todas as partes do mundo, deixaram claro o que significa, para o Papa, ser pastor da Igreja no mundo, intercessor da humanidade ferida, testemunha do Evangelho que atua em toda a família humana de muitas maneiras, muitas vezes imprevisíveis e ocultas.

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