A Encíclica “Fratelli tutti”, “Todos irmãos”, terceira do pontificado de Francisco, é um texto dedicado à fraternidade e à amizade social que procura acender uma luz de esperança numa humanidade sofrida. Especialmente neste tempo de pandemia.
O Papa Francisco refere-se à Covid-19, logo no número 7 da sua Encíclica afirmando que esta doença “irrompeu de forma inesperada” tendo deixado “a descoberto as nossas falsas seguranças”.
Na pandemia entender as limitações
É, precisamente, pela análise deste tempo de pandemia que iniciamos o comentário de D. José Ornelas, bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, sobre a Encíclica “Fratelli tutti” do Papa Francisco. Uma entrevista realizada com a colaboração do Gabinete de Comunicação da Diocese de Setúbal.
“A pandemia significou, de modo muito claro, uma tomada de consciência de toda a humanidade a nível planetário da realidade que nós somos. O Papa diz claramente e exclui completamente a leitura de que a pandemia seja um castigo de Deus. Agora, a pandemia faz-nos ver muitas coisas da humanidade que precisam de ser corrigidas e que precisam de ser endireitadas. A pandemia pode dar-nos luz e dá-nos luz para entender e repensar o mundo. E, antes de mais, é a experiência da limitação inerente ao ser humano. Tantas vezes, estamos cegos pela tecnologia, pelas nossas realizações, pelo sucesso económico, pelas estratégias que compomos. E, portanto, veio-nos dizer que é preciso entender as nossas limitações” – disse.
Uma sociedade moderna não pode permitir a exclusão e a miséria: “Veio a pandemia dizer-nos que uma sociedade moderna, que se quer de sucesso não pode coexistir com uma sociedade injusta, que exclui, que deixa setores seus na miséria” – frisa.
Encíclica em modo novo e integrado
Para D. José Ornelas, o Papa na sua Encíclica trata o tema da fraternidade num modo novo e integrado como já tinha feito na “Laudato Sì”:
“Mas é colocado de um modo novo. Um modo integrado como já o Papa tinha feito a propósito da Encíclica ‘Laudato Sì’ uma ecologia global de uma visão da humanidade na justiça, na paz, no respeito pela Criação e pelo planeta, mas ao mesmo tempo com consideração de futuro. E penso que isso é muito importante. De facto, esta Encíclica podia-se chamar também de uma ecologia de humanidade integrando a política, a economia, as questões sociais, do trabalho, da pobreza, para que se possa criar um mundo com possibilidade de se sustentar a si próprio e de criar uma humanidade para todos. É essa verdadeira globalização na realidade que está aqui” – afirma.
Linguagem nova numa Encíclica que abre horizontes
Na sua Encíclica o Papa abre novos horizontes utilizando uma linguagem nova – diz D. José Ornelas:
“É uma linguagem nova, acessível, oriunda de um contexto social diferente. Nós estamos habituados à linguagem da Igreja muito marcada pela situação da Europa. O Papa Francisco chega e diz que ele mesmo vem dos confins do mundo, desse mundo das periferias. Fala uma linguagem nova. E isto agradou a muita gente. E o que se nota nesta Encíclica é a descomplicação da linguagem sem perder com isso a profundidade, a exatidão, mas sempre numa linguagem que abre novos horizontes. E a própria linguagem ajuda a que esses horizontes possam chegar a todos. A própria universalidade da linguagem adequa-se ao tipo de mensagem que o Papa quer transmitir” – declara.
O escândalo de viver da miséria dos outros
Muitos enriquecem com a miséria dos outros – recorda o bispo de Setúbal – e isso “é altamente escandaloso”: “Estávamos todos tão preocupados com o PIB, com a dívida e de repente agora os políticos são os primeiros a dizer: esqueçamos a dívida por um momento. A Europa a dizer: esta ditadura das finanças não é uma boa solução. Já no fim da crise de 2008 se percebia que os custos sociais da crise, que foram suportados pelos setores mais baixos da população, em todo o mundo, que são incomportáveis, que isto não é solução para resolver os problemas do mundo. Porque na realidade muitos acabaram por enriquecer muito durante tudo isto e acabaram por ser aqueles que afinal ganharam com a miséria dos outros. E isto é altamente escandaloso e inviável para uma humanidade diferente e para uma humanidade de sucesso” – salienta.
Evangelho na política, inserido na realidade
Para o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa esta Encíclica ajuda a buscar uma visão de fé para os problemas do mundo:
“A busca de uma visão de fé ao serviço da globalização. Isto é, a visão de fé que, tantas vezes, nós estamos a separar do resto dos problemas do mundo. Da vida, das pessoas e do mundo. Nestes dias mesmo, falando desta Encíclica, houve muitas reações e uma delas que eu próprio recebi dizia: a Igreja meta-se nas coisas religiosas e deixe a política para outros! E isso é ainda a mentalidade que muita gente tem. Claro que o Papa não é um político. Não quer fazer política no sentido menos nobre que tantas vezes se lhe dá. Mas, o Papa quer que o Evangelho chegue à política. Porque senão um Evangelho que não cria cultura, que não cria atitude, que não cria modo de se organizar, não é Evangelho de Jesus. É um Evangelho separado da realidade e que não é incarnado. Ora aquilo que caracteriza, precisamente, o mistério cristão é de um Deus que se fez homem. Homem, naturalmente inserido numa cultura, numa sociedade, sujeito a leis, que tantas vezes não concordava, mas que o condicionavam e até puseram fim à sua vida. É um Evangelho que é sempre nesta realidade humana que se insere. E o Papa não faz política no sentido de gerir politicamente a sociedade, mas quer ser aquilo que o Evangelho é: sal e luz. E ajuda a pensar, não numa logica de poder, mas numa lógica de oferta e de proposta que se dirige sempre ao coração das pessoas, porque é a partir daí que podem surgir relações novas na sociedade e pode surgir uma cultura nova e um modo de pensar e de agir diferente” – sublinhou.
D. José Ornelas, bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, comentando a Encíclica “Fratelli tutti” do Papa Francisco. Será já bem próximo do Natal que na próxima semana publicaremos a segunda parte desta entrevista.