Voltamos atrás no tempo quando Francisco era Jorge Mario Bergoglio, um jesuíta responsável por seus confrades na Argentina, e chegamos às raízes de uma “vontade de mudança” que então como agora, em tempos de pandemia, marcou seu pensamento.
É isso que nos ajuda a fazer o livro intitulado “Cambiamo!” (“Mudamos!” Na tradução livre), das edições Solferino, que saiu nesta quinta-feira (18/06), com o prefácio do diretor da revista jesuíta “La Civiltà Cattolica”, pe. Antonio Spadaro, que o apresenta como uma obra que “nos ajuda a compreender a experiência religiosa e os critérios de ação do primeiro Papa jesuíta na história da Igreja”, que nos ajuda a “entender o Pontífice e sua convicção da importância da utopia entendida não como abstração, mas como força vital e abertura ao futuro a partir do real, do que se é”.
“Para entender um homem, de fato”, lê-se no prefácio, “é preciso ir às raízes de sua formação, mas também investigar pontos de reviravolta, momentos de crise e guinada. Por isso, este livro é importante para entender o Papa Francisco: é a expressão de um tempo de passagem, no qual ele amadureceu a capacidade de discernimento e de escolha”.
O desejo
Em quais eixos gira a reflexão? Primeiramente sobre o desejo que é discutido na primeira e segunda partes do volume. “Qualquer vida se decide na capacidade de se doar. É ali que se transcende, que se torna fecunda”, diz no Preâmbulo assinado por Jorge Bergoglio no dia de Natal de 1987. “Pelo contrário”, prossegue ele, “vida e morte para si mesmas significam fechamento, incapacidade de ser fecundas”. Não viver para si mesmo e não morrer para si mesmo é, portanto, a condição de qualquer possibilidade de transcender a si mesmo. Somente deste modo a vida é vida verdadeira e a morte é morte verdadeira. Caso contrário, há apenas uma caricatura, uma corrente de egoísmo cansativa – e ao mesmo tempo esgotante – que nos sufoca na apatia espiritual”. Pensamentos que, segundo o pe. Spadaro, mostram a superação de “todo vitalismo vazio” e se concentram no que “se abre” de dentro, ou seja, o desejo, uma “força interior que se escancara para o sentido da vida”. Na primeira das seis partes que compõem o volume, emerge como o futuro Papa assimila a visão de Santo Inácio de Loyola, tal como emerge nos Exercícios Espirituais. Ele afirma que “os desejos ampliam o coração”, e neles é “possível discernir a voz de Deus” na história de hoje.
“Como podemos entender, o desejo é a mola que abre a nossa existência e se modula no ‘meio’ de toda vida. Bergoglio – ressalta pe. Spadaro, seguindo os principais pontos do conteúdo do volume – nunca fala de um desejo heroico e sublime, distante do transcorrer diário dos dias. Baseia-se no simples reconhecimento do nosso ser criaturas, que é o “princípio e fundamento” da vida espiritual. E assim começa o percurso da busca da nossa verdade aos olhos de Deus. Mas também o percurso no qual buscamos a verdade de Deus sobre nós. Bergoglio tem muito cuidado em reiterar o fato de que o caminho espiritual nunca é a viagem a ‘outro lugar’, e nada tem a ver com uma pseudo-mística que ‘promove fábulas inventadas por nossos corações ansiosos e não purificados’. A verdadeira viagem interior implica ‘assumir’ a nossa idade, a nossa pobreza, a história que nos pertence”.
Você e Deus
Daí o percurso espiritual diante de Deus e de si mesmo que o volume trata em particular na terceira parte, na qual, ao abordar o aspecto do autoconhecimento – neste caso uma série de pistas e orientações úteis para acompanhar a formação dos noviços – o autor nos convida a buscar a autenticidade neste caminho de crescimento, que pode valer para todos os caminhos da fé. “O homem que vai ao encontro de Deus”, observa Bergoglio, “deve aprender a conhecer-se, deve conhecer a si mesmo em suas aspirações mais íntimas. Deve buscar a Deus com sua realidade precisa, e não com uma máscara. Ele deve crescer por dentro, com o seu próprio esqueleto, e não pedir força a uma armadura”. “O leitor – comenta pe. Spadaro – aqui se verá confrontado, antes de tudo, com o mistério de si mesmo em relação ao seu Senhor. Nenhuma leitura distante e objetiva poderá abrir o cofre destas páginas. A única forma de lê-las, de compreendê-las, é o envolvimento pessoal”. Para Bergoglio, a mística nunca é abstrata, mas ligada à concretude da história, aliás da própria história. Portanto, o conhecimento de Deus e o autoconhecimento andam de mãos dadas”. O seguimento de Cristo para o então responsável dos jesuítas argentinos é basicamente composto de um abandono radical “nas mãos do Pai e dar a própria disponibilidade de ser abandonados pelo Pai”. Em suma, “estar disposto a ‘perder’ Deus para estar verdadeiramente com Ele”. É sobre este abandono que se funda a missão e a missionariedade da Igreja”.
Esvaziado de si e a serviço de Deus
No início da quarta parte, numa passagem Bergoglio afirma categórico: “Os cristãos se dividem em duas categorias: os que permanecem firmes e os que não permanecem firmes. Estes últimos são seduzidos”. Nesta seção, intitulada “Palavras sobre o Natal”, a investigação interior se detém no silêncio, na comunidade, no amor e na fortaleza, no “desejo de ser bom”, mas é precedida por uma visão concreta do valor da “perseverança na vocação”. “Resistir, suportar, ser paciente, tolerar – escreve o autor – significa ser firme diante dos ‘movimentos’ que tentam nos fazer falhar”. Enquanto a quinta parte, “Alguns aspectos da vida religiosa”, sonda a criticidade das fraquezas e indica o ponto ideal de chegada, entre parágrafos que vão desde “A sedução do bem-estar” ou “Infidelidade e incerteza” até “Paz e identidade”, “Coragem e constância apostólica”. Com essa dialética que Bergoglio identifica entre “Cruz e sentido bélico da vida”.
Toda a meditação de Bergoglio – lê-se no Prefácio – nasce da contemplação do coração de Deus, que, por amor, “esvaziou-se”. Este esvaziamento, disse o Papa Francisco em 3 de janeiro de 2014 aos jesuítas reunidos na Igreja de Jesus, provoca “a inquietação do nosso abismo” que nos deixa abertos ao Deus semper maior, ao Deus que nos surpreende sem cessar, superando os nossos ideais e os nossos desejos. Esta é também a chave para entender o que significou para Jorge Mario Bergoglio ser membro da Companhia de Jesus, um tema que encontra amplo espaço na sexta e última parte do volume intitulado “Os Jesuítas” e articulado entre a história da presença na Argentina e os critérios da vida apostólica, com um espaço sobre o papel dos leigos e do “povo”.
O livro se encerra com uma meditação intitulada “O Senhor do Milagre de Salta” na qual o conceito de “graça” se entrelaça com a oração, a paciência, a penitência e a cruz. Bergoglio escreve:
“É a gratidão que enraíza uma graça em nós. Se um coração não se alimenta de gratidão, a esperança muda de sinal: não mais o sentimento de gratidão de quem recebeu e a mão estendida ainda para receber, mas a pressa ingrata que rejeita tudo porque tudo lhe parece pouco”.
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