Pessoas de esperança, reconciliadas que reconhecem suas amarguras e foram transformadas. É a exortação que o Papa Francisco dirige ao clero da Diocese de Roma, no discurso lido, na manhã desta quinta-feira (27/02), pelo cardeal vigário, Angelo De Donatis, na Basílica de São João de Latrão, durante a tradicional liturgia penitencial no início da Quaresma, na qual Francisco não participou por causa de uma “leve indisposição”, conforme a nota divulgada pela Sala de Imprensa da Santa Sé. Toda a reflexão fala sobre a amargura que pode se infiltrar na vida de um sacerdote como um “inimigo sutil” que encontra uma maneira de se camuflar de parasita. Trata-se de amargura na relação de fé, com o bispo e entre confrades.
Não onipotentes, mas pecadores perdoados
O Papa enfatiza que o seu pensamento é fruto, por um lado, de ouvir alguns seminaristas e sacerdotes italianos, mas sem referência a nenhuma situação específica, enquanto, por outro, observa que a maioria dos sacerdotes ainda está feliz com a sua vida e considera essas amarguras como normais. Portanto, encará-las, ajuda a entrar em contato com a nossa humanidade e, afirma Francisco, “nos lembra que, como sacerdotes, não somos chamados a ser onipotentes, mas homens pecadores perdoados”.
“A espiritualidade do protesto”
Na raiz da amargura no relacionamento de fé, vemos uma esperança desiludida. Uma esperança provavelmente trocada por uma expectativa. “De fato, a esperança cristã não decepciona”, sublinha o Papa, porque “esperar não é se convencer de que as coisas vão melhorar, mas que tudo o que acontece tem significado à luz da Páscoa”. Para alimentá-la, no entanto, é necessária uma intensa vida de oração, colocando-se “à luz da Palavra de Deus”. “O verdadeiro protesto”, explica ele, não é “contra Deus, mas diante dele”, nasce da confiança.
Esperança cristã, não expectativa
Para entrar profundamente no sentido da esperança é preciso entender a diferença da expectativa que nasce quando”, observa Francisco, “lutamos”, buscando certezas, quando o ponto de referência somos nós mesmos. Em vez disso, a esperança brota quando se decide não se defender mais e, como o teatino Lorenzo Scupoli disse em sua ‘Luta espiritual’, é preciso “desconfiar-se de si e confiar em Deus”. Baseia-se numa aliança: que a vida plena prometida por Deus no dia da ordenação se realiza “se vivo a Páscoa e não se as coisas acontecem como eu digo”.
Problemas com o bispo
“Sem cair no lugar comum que dá a culpa de tudo aos superiores, pois na realidade somos falhos, permanece o fato”, escreve o Papa, de que “muita amargura na vida do sacerdote acontece por causa das omissões dos pastores”. Não se trata de divergências inevitáveis sobre problemas administrativos ou estilos pastorais, mas de dois aspectos “desestabilizadores para os padres”. Primeiramente, o que Francisco chama de “uma certa origem autoritária suave”, quando, por uma “distinção”, a pessoa é inscrita entre os que remam contra. O segundo, é a adesão a iniciativas que corre o risco de se tornar “a medida da comunhão”, enquanto o “culto das iniciativas” vai substituindo ao essencial.
A competência suplantada por suposta lealdade
Para traçar a direção certa, o Papa Francisco se refere a São Bento. Na Regra, ele recomenda que o abade consulte toda a comunidade quando tiver que enfrentar uma questão importante, mas também que a decisão final depende dele, com prudência e equidade.
A grande tentação do pastor é circundar-se dos “seus”, dos “vizinhos”; e, assim, infelizmente, a competência real é suplantada por uma certa lealdade presumida, sem distinguir entre quem agrada e quem aconselha desinteressadamente. Isso faz com que o rebanho sofra muito, aceitando frequentemente sem externar nada.
No entanto, os fiéis têm o direito, e algumas vezes o dever, de expressar seus pensamentos sobre o bem da Igreja aos Pastores, conforme exigido pelo Código de Direito Canônico. Certamente, neste tempo de precariedade, a solução parece ser o autoritarismo, “na esfera política isso é evidente”, mas o verdadeiro zelo está na equidade, não na uniformidade, recorda o Papa.
Amargura entre os sacerdotes
Uma terceira causa de amargura nos sacerdotes pode vir dos problemas “entre nós”, ressalta Francisco. O presbítero nos últimos tempos sofreu “os golpes de escândalos, financeiros e sexuais” e a suspeita tornou as relações mais frias e formais:
Diante de escândalos, o maligno nos tenta, impelindo-nos a uma visão “donatista” da Igreja: dentro os impecáveis, fora os que erram! Temos falsas concepções da Igreja militante, numa espécie de puritanismo eclesiológico. A Noiva de Cristo é e continua sendo o campo em que o trigo e o joio crescem até a parusia. Quem não se apropriou dessa visão evangélica da realidade, expõe-se à amarguras indizíveis e inúteis. No entanto, os pecados públicos e divulgados do clero tornaram todos mais cautelosos e menos dispostos a criar laços significativos, sobretudo em relação à partilha da fé.
O povo de Deus espera pessoas que reconciliam
Na conclusão, Francisco ressalta que o povo de Deus “os conhece melhor que ninguém”:
É muito respeitoso, sabe acompanhar e cuidar de seus pastores. Conhece as nossas amarguras e pede ao Senhor nós. Unamos as nossas orações às suas e peçamos ao Senhor para que transforme as nossas amarguras em água fresca para o seu povo. Peçamos ao Senhor para que nos dê a capacidade de reconhecer o que está nos amargando e nos deixar-se transformar, ser pessoas reconciliadas que reconciliam, pacíficas que pacificam, cheias de esperança que infundem esperança. O povo de Deus espera de nós, mestres de espírito, capazes de indicar os poços de água fresca no meio do deserto.
Radio Vaticano