As histórias “podem ajudar-nos a entender e a dizer quem somos” porque “o homem é um ser narrador” que precisa “revestir-se de histórias para custodiar a própria vida”. O Papa Francisco ressalta isso em sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2020, publicada esta sexta-feira (24/01) memória de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas.

Uma mensagem que, todavia, abraça um horizonte bem mais amplo do que a profissão jornalística, como efetivamente Francisco nos habituou desde sua primeira Mensagem para as Comunicações Sociais, a de 2014, quando traçou uma união ideal entre a figura evangélica do Bom Samaritano e a missão realizada hoje pelos “bons comunicadores”.

Num tempo marcado pelo uso instrumental da palavra, utilizada para causar divisão, “doença” da qual infelizmente o mundo católico não é imune, o Papa nos recorda que a comunicação é autêntica se edifica, não se destrói. Se é “humilde” na “busca da verdade”, como já ressaltado na audiência de maio passado aos jornalistas da Associação Imprensa Estrangeira.

E diante do propagar-se de narrações “falsas e malvadas” – até a sofisticada aberração do deep fake (profunda falsificação) –, o Papa encoraja a fazer de modo que a narração fale “de nós e do belo que nos habita” ajudando “a reencontrar as raízes e a força para seguir adiante juntos”. Precisamos – é a sua exortação – “respirar a verdade das boas histórias”.

A Sagrada Escritura, uma “História de histórias”

Na Mensagem é citada a storytelling, técnica sempre mais em voga em vários ambientes da publicidade à política, mas a narração pensada por Francisco não segue lógicas mundanas. Tem um valor mais profundo que “recorda aquilo que somos aos olhos de Deus”. De resto, uma indicação reveladora daquilo que o Papa considera ser um modelo de narração vem já do tema escolhido para a Mensagem: “Para que possas contar e fixar na memória (Ex 10, 2). A vida faz-se história”.

A Sagrada Escritura, observa o Pontífice, é “uma História de histórias” e acrescenta que a Bíblia nos mostra “um Deus que é criador e ao mesmo tempo narrador”. Propriamente “através do seu narrar – prossegue – Deus chama as coisas à vida e, no ápice, cria o homem e a mulher como seus livres interlocutores”.

Na iminência da celebração do “Primeiro Domingo da Palavra de Deus”, instituída com a Carta Apostólica Aperuit Illis, Francisco nos convida, portanto, também com esta Mensagem, a fazer-nos próximos da Sagrada Escritura, a fazê-la nossa, recordando-nos que “a Bíblia é a grande história de amor entre Deus e a humanidade”. Por outro lado, como nos ensina o Livro do Êxodo – do qual o tema da Mensagem é extraído – aprendemos que “o conhecimento de Deus se transmite sobretudo contando, de geração em geração, como Ele continua se fazendo presente”.

Uma parte importante do documento é dedicada pelo Papa às “histórias destrutivas” que descreve com palavras que recordam o caráter imediato das homilias feitas na Casa Santa Marta. Mais uma vez – como na Mensagem para as Comunicações de 2018 dedicada ao fenômeno das fake news -, Francisco chama a atenção para a tentação da serpente, narrada no Livro do Gênesis, que “insere na trama da história um nó difícil de desfazer-se”. O Papa denuncia aquelas histórias que “nos entorpecem, convencendo-nos de que para ser felizes precisamos continuamente ter, possuir, consumir”.

E, retomando um tema que tem muito a peito, estigmatiza a avidez de “boatos e mexericos” dos quais “quase não nos damos conta”, bem como a muita “violência e falsidade” que “consumimos”. A consequência última é o difundir-se de “histórias destrutivas e provocatórias que consumam e quebram os fios frágeis da convivência”. É colocada em risco a dignidade humana, lê-se na Mensagem, que é espoliada pela união de “informações não verificadas” com a repetição de “discursos banais e falsamente persuasivos” que golpeiam “com proclamações de ódio”.

A tudo isso, pede que se reaja com “coragem” para repelir tais ameaças. Num mundo que suporta “tantas dilacerações”, Francisco faz votos de que se possa “reconduzir à luz a verdade daquilo que somos, inclusive na heroicidade ignorada do cotidiano”.

Nenhuma história humana é insignificante aos olhos de Deus

Em seguida, o Papa dirige a atenção para a história de Jesus, que mostra como Deus cuidou do homem e que para Ele “não existem histórias humanas insignificantes ou pequenas”. Por obra o Espírito Santo – acrescenta – toda história, mesmo a mais esquecida”, pode “renascer como obra-prima, tornando-se um apêndice de Evangelho”. Cita algumas histórias que “admiravelmente encenaram o encontro entre a liberdade de Deus e a do homem” das Confissões de Agostinho e os Irmãos Karamazov.

Convida a ler as histórias dos santos e a partilhar aquelas “histórias que têm perfume de Evangelho” que cada um de nós conhece. “Contar a Deus a nossa história jamais é inútil”, reitera, porque “ninguém é um figurante na cena do mundo e a história de cada um é aberta a uma possível mudança”. Por isso, observa, “também quando contamos o mal” podemos reconhecer o bem e “dar-lhe espaço”.

A Mensagem conclui-se com uma oração a Maria a fim de que possa ouvir nossas histórias, possa custodiá-las. Evocando uma imagem querida para Francisco e presente também na Casa Santa Marta, pede à Virgem que desfaça “o cúmulo de nós em que é emaranhada a nossa vida”, ajudando-nos a “construir histórias de paz e de futuro”.

Radio Vaticano

Foi divulgada, nesta sexta-feira (24/01), memória de São Francisco de Sales, a mensagem do Papa Francisco para o 54° Dia Mundial das Comunicações Sociais intitulada «“Para que possas contar e fixar na memória” (Ex 10, 2). A vida faz-se história». O Dia Mundial das Comunicações Sociais será celebrado em 24 de maio próximo.

O Santo Padre dedicou a mensagem deste ano ao tema da narração. Segundo ele, “para não nos perdermos, precisamos respirar a verdade das histórias boas: histórias que edifiquem, e não as que destroem. Histórias que ajudem a reencontrar as raízes e a força para prosseguirmos juntos. Na confusão das vozes e mensagens que nos rodeiam, temos necessidade duma narração humana, que nos fale de nós mesmos e da beleza que nos habita; uma narração que saiba olhar o mundo e os acontecimentos com ternura, conte a nossa participação num tecido vivo, revele o entrançado dos fios pelos quais estamos ligados uns aos outros”.

Tecer histórias

Segundo o Papa, “o homem é um ente narrador. As narrativas marcam-nos, plasmam as nossas convicções e comportamentos, podem nos ajudar a compreender e dizer quem somos. O homem não só é o único ser que precisa de vestuário para cobrir a própria vulnerabilidade mas também o único que tem necessidade de narrar-se a si mesmo, «revestir-se» de histórias para guardar a própria vida. O homem é um ente narrador, porque descobre-se e enriquece-se com as tramas dos seus dias. Mas, desde o início, a nossa narração está ameaçada: na história, serpeia o mal”.

Nem todas as histórias são boas

“Mas, enquanto as histórias utilizadas para proveito próprio ou ao serviço do poder têm vida curta, uma história boa é capaz de transpor os confins do espaço e do tempo: à distância de séculos, permanece atual, porque nutre a vida. Ocorre paciência e discernimento para descobrirmos histórias que nos ajudem a não perder o fio, no meio das inúmeras lacerações de hoje; histórias que tragam à luz a verdade daquilo que somos, mesmo na heroicidade oculta do dia a dia.”

A História das histórias

“A Sagrada Escritura é uma História de histórias. Quantas vicissitudes, povos, pessoas nos apresenta! Desde o início, mostra-nos um Deus que é simultaneamente criador e narrador. Deus, através deste seu narrar, chama à vida as coisas e, no apogeu, cria o homem e a mulher como seus livres interlocutores, geradores de história juntamente com Ele”, ressalta Francisco na mensagem. “Não nascemos perfeitos, mas necessitamos de ser constantemente «tecidos» e «recamados». A vida nos foi dada como convite a continuar a tecer a «maravilha estupenda» que somos. Neste sentido, a Bíblia é a grande história de amor entre Deus e a humanidade. No centro, está Jesus: a sua história leva à perfeição o amor de Deus pelo homem e, ao mesmo tempo, a história de amor do homem por Deus. Assim, o homem será chamado, de geração em geração, a contar e fixar na memória os episódios mais significativos desta História de histórias: os episódios capazes de comunicar o sentido daquilo que aconteceu. Jesus falava de Deus, não com discursos abstratos, mas com  parábolas, breves narrativas tiradas da vida de todos os dias. Aqui a vida se faz história e depois, para o ouvinte, a história se faz vida: tal narração entra na vida de quem a escuta e a transforma.”

Uma história que se renova

“A história de Cristo não é um patrimônio do passado; é a nossa história, sempre atual. Depois que Deus Se fez história, toda a história humana é, de certo modo, história divina. Cada história humana tem uma dignidade incancelável. Por isso, a humanidade merece narrações que estejam à sua altura, àquela altura vertiginosa e fascinante a que Jesus a elevou. Cada um de nós conhece várias histórias que perfumam de Evangelho: testemunham o Amor que transforma a vida. Estas histórias pedem para ser partilhadas, contadas, feitas viver em todos os tempos, com todas as linguagens, por todos os meios.”

Uma história que nos renova

O Papa concluiu a mensagem, frisando que “em cada grande história, entra em jogo a nossa história. Ao mesmo tempo que lemos a Escritura, as histórias dos Santos e outros textos que souberam ler a alma do homem e trazer à luz a sua beleza, o Espírito Santo fica livre para escrever no nosso coração, renovando em nós a memória daquilo que somos aos olhos de Deus. Quando fazemos memória do amor que nos criou e salvou, quando colocamos amor nas nossas histórias diárias, quando tecemos de misericórdia as tramas dos nossos dias, nesse momento estamos mudando de página. Já não ficamos atados a lamentos e tristezas, ligados a uma memória doente que nos aprisiona o coração, mas, abrindo-nos aos outros, abrimo-nos à própria visão do Narrador. Com o olhar do Narrador, o único que tem o ponto de vista final, aproximamo-nos depois dos protagonistas, dos nossos irmãos e irmãs, atores juntamente conosco da história de hoje. Sim, porque ninguém é mero figurante no palco do mundo; a história de cada um está aberta a possibilidades de mudança. Confiemo-nos a uma Mulher que teceu a humanidade de Deus no seio e, diz o Evangelho, teceu tudo o que Lhe acontecia. A Virgem Maria tudo guardou, meditando-o no seu coração. Peçamos-lhe ajuda a Ela, que soube desatar os nós da vida com a força suave do amor.”

Radio Vaticano